Sobre este espaço

Este é um espaço destinado à reflexões acerca da memória, do tempo e de histórias.. Histórias de vida, histórias inventadas, histórias... Um espaço onde a imaginação possa fluir, viajar. Um espaço também para escrever sobre minhas reflexões referentes aos meus estudos sobre arqueologia e antropologia... Antes de mais nada, uma espécie de Diário daquilo que me impulsiona, um lugar para organizar (ou tentar) meus pensamentos.. antes que eles voem por aí.

Boa exploração!

Roberta Cadaval

sábado, 4 de dezembro de 2010

Um romance etnográfico

Depois de um longo tempo afastada deste espaço singelo, em função de estudos e mais estudos, retorno cheia de inspirações e aspirações! Como ficarei mais alguns dias afastada, deixarei aqui uma sugestão de leitura, que fiz esta semana e que me apaixonei.. continuo apaixonada... Recomendo para lerem nas férias!!!!



PHILIPPE DESCOLA
AS LANÇAS DO CREPÚSCULO
PRÓLOGO E PRIMEIRA PARTE 
(DOMESTICANDO A FLORESTA)

Na primeira parte do livro de Descola, o autor situa-nos entre os índios Achuar e contextualiza essa aventura etnográfica. Este livro, que podemos avocar como um romance etnográfico (pois a narrativa faz com que o leitor participe das atividades como se lá estivesse) envolve o leitor em todos os momentos, causando sensações próximas das que Descola narra ter vivido. As primeiras frustrações em relação à pesquisa, as dificuldades relacionadas à língua e imersão total nos hábitos e costumes de um povo tão diferente do etnólogo.

Inicialmente, o autor situa-nos sobre suas condições iniciais, enquanto etnólogo principiante, e suas aspirações e desejos de desenvolver uma pesquisa na área em que atuou. Primeiramente, ele contextualiza os índios Jivaro, explicando que, segundo etnografias já realizadas nesta região, estes se dividem em 4 tribos: Shuar, Aguaruna, Achuar e Huambisa. Seu objetivo era realizar um estudo sobre uma comunidade que pouco (ou nada) se sabia e, sendo assim, seu foco concentrava-se em uma destas tribos, os Achuar. Dos Achuar só se sabia, na época, que viviam a leste dos Shuar, que eram seus inimigos hereditários e que não cultivavam contatos com brancos. (DESCOLA, 2006. p. 41-42)


Apesar de o livro assumir a forma de um romance, o que ele narra não traz uma visão tão romântica do fazer antropológico. O autor é de fato estimulado pelo espírito aventureiro (o que, talvez, dê ao livro este tom mais romantizado) da busca pelo desconhecido, mas faz questão de transparecer todas as dificuldades e afrontamentos que o pesquisador tem de enfrentar ao pesquisar uma comunidade tão exótica. Primeiramente, o acesso até essas populações. De que forma chegar até elas e estabelecer o primeiro contato/diálogo? Depois do contato inicial, como relacionar-se com estas pessoas? Principalmente no caso dele, em que as informações que obteve (etnografias de pesquisadores que trabalharam com tribos vizinhas, relatos de missionários e viajantes e informações orais da população da cidade de Puyo) sobre estes povos - e esta tribo especificamente - apontavam continuamente para um ponto em comum: uma percepção dos Achuar como violentos, canibais e caçadores de cabeças. Sobre isto, destaco um ponto importante em que Descola transcreve como ‘uma lei implícita da prática etnográfica’;
O abismo irredutível que eu constatava entre o meu saber livresco e racionalista sobre os índios da Amazônia equatoriana e o universo lendário de que os habitantes de Puyo nos falavam tornou-se para mim a primeira ilustração de uma lei implícita da prática etnográfica. Se nos arriscássemos a formulá-la, parodiando a concisão da linguagem da física, ela poderia ser enunciada do seguinte modo: a capacidade de objetivação é inversamente proporcional à distância do objeto observado. Em outros termos, quanto maior o afastamento geográfico e cultural que o etnólogo estabelecer entre o seu ambiente de origem e o “campo” escolhido, tanto menos sensível ele estará aos preconceitos das populações dominantes locais em relação às sociedades marginais que estiver estudando. (DESCOLA, 2006. p. 28)

Com isto, o autor salienta que devemos filtrar as informações que colhemos no campo, acerca do grupo que escolhemos pesquisar, e que este processo torna-se menos complicado quando temos um distanciamento maior entre o meio em que vivemos e o campo que pretendemos estudar[1].


Mais adiante, Descola faz uma reflexão sobre o ofício do etnólogo e nos diz que numa formação voltada para as praticas lúdicas da humanidade, nada prepara o etnógrafo principiante para os episódios de camping desconfortável, somente a prática. Ele ainda nos dias que, o universo do etnólogo é menos o das estepes e matas virgens do que o das salas de aula, leituras e enfrentamentos com páginas em branco. Em seguida, o autor revela-nos sua trajetória - a qual acompanhamos com grande expectativa. Este momento do livro é bastante interessante, porque nos aproxima, enquanto principiantes, dos anseios e perspectivas de Descola, também principiante até então. Estimulado por Maurice Godelier e orientado por Claude Lévi-Strauss, Philippe Descola parte rumo ao desconhecido em meio à mata virgem da Amazônia equatoriana. E nós, leitores, o acompanhamos neste ousado passo, e não perdemos o avanço de seu trabalho.


Uma questão importante, destacada pelo autor, é sobre as divergências teóricas que existem, no campo da antropologia, entre diferentes escolas desta disciplina. Segundo ele, nesta carreira somos identificados pelo povo que estudamos e as afinidades intelectuais nascem muitas vezes da cumplicidade que existe devido à experiências etnográficas análogas. E mais, é raro que um pesquisador escolha uma região a ser estudada simplesmente ao acaso.  Cada região do mundo e cada tipo de sociedade suscita vocações especificas de acordo com o caráter de cada um, tipologia sutil que a própria pratica de campo se encarrega de fortalecer. (Descolas, 2006. p. 48) E assim, segundo este autor, os conflitos entre as escolas antropológicas representam, muitas vezes, uma incompreensão mútua entre divergências teóricas e diferentes estilos de se relacionar, que escondem incompatibilidades mais fundamentais nos modos de estar no mundo[2].


Ao adentrar no universo Achuar, Descola capitula suas primeiras descrições e interpretações em 9 partes: aprendizados, amanhecer, rumores de aldeia, tempo de parada - reflexão, comércios, roças, sonhos, caçadas e águas. Começando pelos aprendizados, o autor narra a experiência que viveu nos primeiros dias na aldeia. Acolhido por uma família Achuar, ele e sua esposa Anne Christine (para quem ele dedica este livro), aos poucos, foram deparando-se com a dificuldade na comunicação e com isso apareceram às primeiras frustrações. Este tipo de pesquisa não traz resultados simples e rápidos, é necessário paciência e dedicação do pesquisador. Nesta parte do livro, é muito interessante o percurso que o leitor viaja. Nas páginas de Descola, fazemos uma imersão nos hábitos e modos de viver dos Achuar, pois o autor vai para além de uma descrição do visível, ele traduz essas descrições de acordo com suas interpretações pautadas no próprio modo de pensar Achuar. E com brilhantismo e humildade, o autor expõe seu desejo de retornar para o aconchego de sua casa, fixando que, o que o ajudou a mantê-lo envolvido com seu objetivo, foi a presença de sua companheira, fiel até o fim da pesquisa. Ao aprendermos sobre cada espírito que acompanha as atividades achuar, suas relações de parentesco, simbologias e significados e chegamos finalmente à metáfora feita com o espelho de Alice, ao fim da parte 1 do livro, e verificamos, nas entrelinhas, o conselho de Lévi-Strauss dado para Descola: “Deixe-se levar pelo campo”. Nos primeiros contatos, Descola sentiu haver fracassado em seu papel de etnógrafo, enquanto que seu informante indígena cumpria bem a sua parte. Porém, isto demonstrou apenas uma realidade intrínseca do fazer antropológico: a necessidade de o pesquisador ter paciência e dedicação. Provavelmente, não é no primeiro contato que se estabelecem as primeiras percepções descritivas e interpretativas. As informações sobre um mito importante - que Descola pensava estar ‘perdendo’ por não compreender e não conseguir gravar - voltariam a tona em outro momento. Em um momento em que ele estaria mais bem preparado para compreender também.
Assim, deixando-se levar pelo campo e deixando o leitor envolver-se por este campo, ele termina a primeira parte solucionando um enigma que pensava haver perdido lá no inicio! Informações estas, que não aparecem de imediato, e só confirmam a importância de imergir totalmente na cultura a ser estudada.
Por fim, Descola traz-nos uma reflexão acerca dos dados etnográficos – que para ele, são qualquer coisa menos um saber constituído - e da etnografia versus etnologia, que, para o autor, a primeira refere-se ao registro e interpretação, enquanto que a segunda se esforça em trazer a luz princípios que regem o funcionamento dos diferentes sistemas identificáveis por hipóteses no seio de cada sociedade (sistemas políticos, econômicos, de parentesco), abrindo assim o caminho para a comparação com outras culturas.

Foto retirada do site http://www.achuarperu.org/


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
DESCOLA, Philippe. As lanças do crepúsculo. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

[1] Acredito que seja importante analisar e descrever esse tipo de informação, ou mito, que são repassados através da História Oral, mas isto, para um estudo que seja desenvolvido sobre a comunidade em questão. No caso de a comunidade pesquisada ser a própria “Legião Estrangeira” (como Descola vem a chamar este mito) penso ser necessário levar em consideração, é claro, todas essas informações, mas com cuidado para não deixar se envolver demais por ela.
[2] Eu diria mais, “incompatibilidades mais fundamentais nos modos de ser e estar no mundo.”

O quê estes filmes têm em comum?

O quê estes filmes têm em comum?
"Le fabuleux destin d'Amélie Poulain", "Uma vida iluminada" e "Coisas insignificantes".