PHILIPPE DESCOLA
AS LANÇAS DO CREPÚSCULO
PRÓLOGO E PRIMEIRA PARTE
(DOMESTICANDO A FLORESTA)
(DOMESTICANDO A FLORESTA)
Na primeira parte do livro de Descola, o autor situa-nos entre os índios Achuar e contextualiza essa aventura etnográfica. Este livro, que podemos avocar como um romance etnográfico (pois a narrativa faz com que o leitor participe das atividades como se lá estivesse) envolve o leitor em todos os momentos, causando sensações próximas das que Descola narra ter vivido. As primeiras frustrações em relação à pesquisa, as dificuldades relacionadas à língua e imersão total nos hábitos e costumes de um povo tão diferente do etnólogo.
Inicialmente, o autor situa-nos sobre suas condições iniciais, enquanto etnólogo principiante, e suas aspirações e desejos de desenvolver uma pesquisa na área em que atuou. Primeiramente, ele contextualiza os índios Jivaro, explicando que, segundo etnografias já realizadas nesta região, estes se dividem em 4 tribos: Shuar, Aguaruna, Achuar e Huambisa. Seu objetivo era realizar um estudo sobre uma comunidade que pouco (ou nada) se sabia e, sendo assim, seu foco concentrava-se em uma destas tribos, os Achuar. Dos Achuar só se sabia, na época, que viviam a leste dos Shuar, que eram seus inimigos hereditários e que não cultivavam contatos com brancos. (DESCOLA, 2006. p. 41-42)
Apesar de o livro assumir a forma de um romance, o que ele narra não traz uma visão tão romântica do fazer antropológico. O autor é de fato estimulado pelo espírito aventureiro (o que, talvez, dê ao livro este tom mais romantizado) da busca pelo desconhecido, mas faz questão de transparecer todas as dificuldades e afrontamentos que o pesquisador tem de enfrentar ao pesquisar uma comunidade tão exótica. Primeiramente, o acesso até essas populações. De que forma chegar até elas e estabelecer o primeiro contato/diálogo? Depois do contato inicial, como relacionar-se com estas pessoas? Principalmente no caso dele, em que as informações que obteve (etnografias de pesquisadores que trabalharam com tribos vizinhas, relatos de missionários e viajantes e informações orais da população da cidade de Puyo) sobre estes povos - e esta tribo especificamente - apontavam continuamente para um ponto em comum: uma percepção dos Achuar como violentos, canibais e caçadores de cabeças. Sobre isto, destaco um ponto importante em que Descola transcreve como ‘uma lei implícita da prática etnográfica’;
O abismo irredutível que eu constatava entre o meu saber livresco e racionalista sobre os índios da Amazônia equatoriana e o universo lendário de que os habitantes de Puyo nos falavam tornou-se para mim a primeira ilustração de uma lei implícita da prática etnográfica. Se nos arriscássemos a formulá-la, parodiando a concisão da linguagem da física, ela poderia ser enunciada do seguinte modo: a capacidade de objetivação é inversamente proporcional à distância do objeto observado. Em outros termos, quanto maior o afastamento geográfico e cultural que o etnólogo estabelecer entre o seu ambiente de origem e o “campo” escolhido, tanto menos sensível ele estará aos preconceitos das populações dominantes locais em relação às sociedades marginais que estiver estudando. (DESCOLA, 2006. p. 28)
Com isto, o autor salienta que devemos filtrar as informações que colhemos no campo, acerca do grupo que escolhemos pesquisar, e que este processo torna-se menos complicado quando temos um distanciamento maior entre o meio em que vivemos e o campo que pretendemos estudar[1].
Mais adiante, Descola faz uma reflexão sobre o ofício do etnólogo e nos diz que numa formação voltada para as praticas lúdicas da humanidade, nada prepara o etnógrafo principiante para os episódios de camping desconfortável, somente a prática. Ele ainda nos dias que, o universo do etnólogo é menos o das estepes e matas virgens do que o das salas de aula, leituras e enfrentamentos com páginas em branco. Em seguida, o autor revela-nos sua trajetória - a qual acompanhamos com grande expectativa. Este momento do livro é bastante interessante, porque nos aproxima, enquanto principiantes, dos anseios e perspectivas de Descola, também principiante até então. Estimulado por Maurice Godelier e orientado por Claude Lévi-Strauss, Philippe Descola parte rumo ao desconhecido em meio à mata virgem da Amazônia equatoriana. E nós, leitores, o acompanhamos neste ousado passo, e não perdemos o avanço de seu trabalho.
Uma questão importante, destacada pelo autor, é sobre as divergências teóricas que existem, no campo da antropologia, entre diferentes escolas desta disciplina. Segundo ele, nesta carreira somos identificados pelo povo que estudamos e as afinidades intelectuais nascem muitas vezes da cumplicidade que existe devido à experiências etnográficas análogas. E mais, é raro que um pesquisador escolha uma região a ser estudada simplesmente ao acaso. Cada região do mundo e cada tipo de sociedade suscita vocações especificas de acordo com o caráter de cada um, tipologia sutil que a própria pratica de campo se encarrega de fortalecer. (Descolas, 2006. p. 48) E assim, segundo este autor, os conflitos entre as escolas antropológicas representam, muitas vezes, uma incompreensão mútua entre divergências teóricas e diferentes estilos de se relacionar, que escondem incompatibilidades mais fundamentais nos modos de estar no mundo[2].
Ao adentrar no universo Achuar, Descola capitula suas primeiras descrições e interpretações em 9 partes: aprendizados, amanhecer, rumores de aldeia, tempo de parada - reflexão, comércios, roças, sonhos, caçadas e águas. Começando pelos aprendizados, o autor narra a experiência que viveu nos primeiros dias na aldeia. Acolhido por uma família Achuar, ele e sua esposa Anne Christine (para quem ele dedica este livro), aos poucos, foram deparando-se com a dificuldade na comunicação e com isso apareceram às primeiras frustrações. Este tipo de pesquisa não traz resultados simples e rápidos, é necessário paciência e dedicação do pesquisador. Nesta parte do livro, é muito interessante o percurso que o leitor viaja. Nas páginas de Descola, fazemos uma imersão nos hábitos e modos de viver dos Achuar, pois o autor vai para além de uma descrição do visível, ele traduz essas descrições de acordo com suas interpretações pautadas no próprio modo de pensar Achuar. E com brilhantismo e humildade, o autor expõe seu desejo de retornar para o aconchego de sua casa, fixando que, o que o ajudou a mantê-lo envolvido com seu objetivo, foi a presença de sua companheira, fiel até o fim da pesquisa. Ao aprendermos sobre cada espírito que acompanha as atividades achuar, suas relações de parentesco, simbologias e significados e chegamos finalmente à metáfora feita com o espelho de Alice, ao fim da parte 1 do livro, e verificamos, nas entrelinhas, o conselho de Lévi-Strauss dado para Descola: “Deixe-se levar pelo campo”. Nos primeiros contatos, Descola sentiu haver fracassado em seu papel de etnógrafo, enquanto que seu informante indígena cumpria bem a sua parte. Porém, isto demonstrou apenas uma realidade intrínseca do fazer antropológico: a necessidade de o pesquisador ter paciência e dedicação. Provavelmente, não é no primeiro contato que se estabelecem as primeiras percepções descritivas e interpretativas. As informações sobre um mito importante - que Descola pensava estar ‘perdendo’ por não compreender e não conseguir gravar - voltariam a tona em outro momento. Em um momento em que ele estaria mais bem preparado para compreender também.
Assim, deixando-se levar pelo campo e deixando o leitor envolver-se por este campo, ele termina a primeira parte solucionando um enigma que pensava haver perdido lá no inicio! Informações estas, que não aparecem de imediato, e só confirmam a importância de imergir totalmente na cultura a ser estudada.
Por fim, Descola traz-nos uma reflexão acerca dos dados etnográficos – que para ele, são qualquer coisa menos um saber constituído - e da etnografia versus etnologia, que, para o autor, a primeira refere-se ao registro e interpretação, enquanto que a segunda se esforça em trazer a luz princípios que regem o funcionamento dos diferentes sistemas identificáveis por hipóteses no seio de cada sociedade (sistemas políticos, econômicos, de parentesco), abrindo assim o caminho para a comparação com outras culturas.
Foto retirada do site http://www.achuarperu.org/
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
DESCOLA, Philippe. As lanças do crepúsculo. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
[1] Acredito que seja importante analisar e descrever esse tipo de informação, ou mito, que são repassados através da História Oral, mas isto, para um estudo que seja desenvolvido sobre a comunidade em questão. No caso de a comunidade pesquisada ser a própria “Legião Estrangeira” (como Descola vem a chamar este mito) penso ser necessário levar em consideração, é claro, todas essas informações, mas com cuidado para não deixar se envolver demais por ela.
[2] Eu diria mais, “incompatibilidades mais fundamentais nos modos de ser e estar no mundo.”